sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

#96 - PERSISTÊNCIA, Rui Knopfli

Desmembrado, o corpo. Apenas um rosto,
a imobilidade larvar da carne
e o silêncio só excedido pelo livor
que, sobre as feições, vai baixando,
sem doçura, nem misericórida.

Cerrados, os lábios configuram
a nudez próxima da maxila.
O sangue é já pó na poeira gretada
e o riso claro dos deuses,
que a brisa ligeira arrasta,

dissolve-se na frágil memória
da erva. Pela noite dentro,
na pausa lenta que perdura,
insinuante, sílaba a sílaba,
pertinaz instala-se o canto.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

#94 - TRADIÇÃO, Rui Knopfli

Palavras, substância, ideia,
persistentes e danosos vermes
da memória, em várias chamas
variamente ardendo, com sôfrega
raiva vos devoro.

                          Em vós
mudado, de vós moldarei,
porque minhas, palavras
outras e únicas.
                          Louco

ou iluminado, a baba
incandescente tombar-me-á
incólume nos lábios febris,
ouro e sangue, sangue e ouro.
Artífice elusivo do sonho,

cinábrio do torvelinho e da noite,
tal poder pode mais em mim
do que eu poder posso.
Instrumento, embora, querer
tê-lo-ei querido.

                            Mas querer
quis mais que eu.
                            E o que terei
querido, quer em mim
e seu poder é cumpri-lo.


terça-feira, 9 de janeiro de 2018

#93 - ÚLTIMO SONETO, Carlos Queirós

Se me sobrevivesse, imperecida,
A memória da angústia que sofri
Na desordem do tempo em que vivi,
Já tinha fundamento a minha vida.

Debrucei-me na História, mas não vi
outra idade com esta parecida:
Tantos caminhos, tantos! e perdida,
A noção de chegar até aqui!

Árvore do passado! já não cabem
mais ilusões à sombra dos teus ramos...
E os teus frutos, agora, a nada sabem!

Poesia! onde me levas? onde vamos,
se as fórmulas antigas não nos abrem
O mistério da treva que sondamos!?

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

#92 - METODOLOGIA, Rui Knopfli

Convoco os duendes da inquietação
e da alegria, urdindo um laborioso
rito circular, delicada teia iridiscente
de que, relutante, a luz se vá
pouco a pouco enamorando.

Palavras não as profiro
sem que antes as tenha encantado
de vagarosa ternura; mal esboçados,
gestos ou afagos, apenas me afloram
a hesitante extremidade dos dedos

que, aquáticos e transidos, estacam
no limiar surpreso do seu rosto.
Movimentos longos da tarde
e sussurros graves da noite
quer tendessem para a imobilidade

e o silêncio, não seriam mais cautos
e aéreos. Quietas estátuas de cristal,
intensamente nos fitamos, enquanto
trémula, lenta e comburente,
a luz mais pura nos atravessa.

#96 - PERSISTÊNCIA, Rui Knopfli

Desmembrado, o corpo. Apenas um rosto, a imobilidade larvar da carne e o silêncio só excedido pelo livor que, sobre as feições, vai baixa...