quarta-feira, 26 de outubro de 2016

#81 - POETRY: THE WORD I AM THINKING OF, Carlos Ávila

& não será
a poesia
(femme fatale)
apenas uma palavra
dentro de outra palavra
que não quer dizer nada
& não será
a poesia
(femme publique)
apenas a migalha
dentro de outra migalha:
fogo de palha
& não será
a poesia
(femme de chambre)
apenas o ar assoprado
por um aloprado
no ouvido do olvido
& não será
a poesia
(femme grosse)
apenas o resto
de um almoço indigesto
entre convivas do inferno
?

o que será
(une femme: infâme)
será

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

#80 - VERSOS QUE EU FAÇO, Álvaro Feijó

Escrevo, muita vez, molhando a pena
no amargo fel da minha própria dor,
versos gritantes em que ponho em cena
fantasmas de ilusões, versos sem cor.

De rubro e negro, pela dor absortos,
como notas vibrantes de clarim,
finda a batalha, abençoando os mortos,
são os versos que eu faço para mim.

Mas outros há, rebeldes como potros,
onde a graça anda imersa, estua e ri,
feitos prò mundo rir, neles, dos outros,
quando, afinal, neles se ri de si.

Outros, que mal escrevo e andam dispersos
na voz-cristal das moças do lugar,
incontestavelmente os melhores versos
que faço, porque neles sei pintar
verdes de esperança, azuis de céu da calma
que dentro em nós sorri,
rubros de coração, vermelhos de alma,
esses que mal escrevo e andam dispersos
na voz-cristal do povo,
                                        são os versos
que eu faço para Ti!

                                                                                                                                                                                                      Outubro de 1937

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

#79 - PRELÚDIO, Sidónio Muralha

A minha Poesia é uma árvore cheia de frutos
que um sol de tragédia amadurece;
mas eu não os arranco nem procuro:
-- o meu sol de tragédia aquece, aquece,
e o fruto cai de maduro.

No resto, sou empregado de escritório
que não procura desvendar abismos,
e passa o dia (glorioso ou inglório)
a somar algarismos...

A minha Poesia é uma árvore cheia de frutos
que um sol de tragédia amadurece;

mas eu não os arranco nem procuro:
-- sei a miséria da estrada percorrida;
o meu sol de tragédia aquece, aquece,

-- e o fruto cai de maduro
no chão da minha vida.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

#78 - TUDO, Saul Dias

Um poema
quase sem palavras
Um esquema
de indefenidos traços
O ecoar de um som
talvez nunca vibrado.

Um retrato
feito com o nada disto,
com tudo isto.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

#77 - A ROSA IRREVELADA, Domingos Carvalho da Silva

Correi o mundo e procurai palavras novas para um poema.
Dos oceanos trazei nomes de peixes e remotas ilhas,
tranças de virgens, seios afogados,
mas
antes de tudo palavras para um poema.

Caminhai nas trevas em busca de uma rosa.
Colhei nos cardos a flor menosprezada.
Buscai no mar os líquenes, as esponjas,
trazei convosco pérolas,
peixes negros e plantas submarinas.

Trazei a náufraga de olhos devorados
por gaivotas. A náufraga de seios como luas
entre ciprestes de algas. A náufraga
de coxas como praias
onde o desejo espuma e desfalece.

Não procureis anelos e ternura
nem um pássaro de canto engaiolado.
Quero-vos noite escura, corpo escuro
de mulher em silêncio, rosa inviolável.

Trazei da noite palavras para um poema.
A irrevelada morte para um poema.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

#76 - "Ela, a Poesia, hoje,", Reinaldo Ferreira [F.º]

Ela, a Poesia, hoje,
Como que foge
De si mesma e se dói
De ter sido algum dia
Meramente poesia.

Erra,
Solitária e solene,
Nos caminhos da terra,
E vitupera o céu
E o que ele encerra:
-- Ah! morra! Ah! esqueça Orfeu!

Canta a grilheta, a enxada
E a madrugada
Dos dias que hão-de vir,
E como frutos, cair
Em nossas mãos...

Fala no imperativo,
E tem por vocativo
-- Irmão! Irmãos!

Mas longe,
E perto, porque em nós,
Onde uma fonte canta
Uma toada clara,
Um fauno sabe e ri,
Na pedra gasta e escura,
Um fim de riso
De ironia rara...

#96 - PERSISTÊNCIA, Rui Knopfli

Desmembrado, o corpo. Apenas um rosto, a imobilidade larvar da carne e o silêncio só excedido pelo livor que, sobre as feições, vai baixa...