quinta-feira, 29 de setembro de 2016

#75 - O POETA, Papiniano Carlos

Seara e nuvem, barco e melodia
no coração das feras e das aves,
trazes a aurora em tuas mãos suaves
abrindo a noite, barco e melodia.

Lírio solar, estrada e cotovia
jamais sonhada pelas próprias aves,
a morte e a vida, a porta e as chaves
tudo em ti se confunde e anuncia.

Sonharam-te os abismos e os morcegos
volvem-se em arcanjos e vêm, cegos
quando os fitas, pousar na tua mão.

Só em ti a beleza encontra a forma.

Cantas! e logo a noite se transforma
no dia que faltava à Criação.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

#74 - ARTE POÉTICA, António Neto

Versos
Os que se escrevem com o pulso
Quando nos cortam a mão
...E só então...
Os que se datam com não-datas de calendário
Mas datas de mortes ou de partos;
O tempo que leva uma criança a nascer
Um cadáver a apodrecer
Não são tempos que admitam rótulo
De anos e mês e hora
Poesia
Só a da agonia
Que mata ou cria
Poemas
Só este
E os que escrevi e não escrevi quando morreste

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

#73 - ARTE POÉTICA, Sophia de Mello Breyner Andresen

A dicção não implica estar alegre ou triste
Mas dar minha voz à veemência das coisas
E fazer do mundo exterior substância da minha mente
Como quem devora o coração do leão.
 
Olha fita escuta
Atenta para a caçada no quarto penumbroso

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

#72 - VENDETA, Corsino Fortes

Um verso escapa
Descaradamente
Do poema que escrevo.

Um rumor longínquo
Segreda-me
Que ele espezinha
Os companheiros
Da minha caravana.

De repente
Ele projecta-se
No «écran» do meu espanto
Com garras e lábios
Manchados de sangue.

Nos meus olhos há imagens feridas.
E numa voz cortante
Blasfema

Sou a dor
       o sangue
       a vítima
Dos teus crimes impunes!
Vingo-te à minha maneira.

Renego-te
Renegado!...

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

#71 - de QUARTAS MORADAS, António Franco Alexandre

O múltiplo sentido das permutações
do tempo que o poema permite
assombra. Uma sequência de imagens
simples, e finalmente convencionais,
a rápida sucessão das unidades dinâmicas do verbo,
combina as três perspectivas

que os filósofos dizem do eterno, do instante, e
do perene. A terra mesma se transforma,
a sombra das nuvens ao voar sobre as casas
dá repouso e abrigo à obra das nossas mãos.
Passam os anos como os dias, o dia de agora
é inteiro e completo como outrora.

Lendo, já sei, talvez nada aconteça:
vento nas folhas, água, uma estrela que cai.
Comendo a sopa quente diante da tv
a ordem da história e da sociedade não está
prevista no menu. Ainda assim são estas imagens voláteis
a razão do poema, enquanto dura o sol.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

#70 - MORDAÇA, Sebastião da Gama

Puseram-lhe na boca uma mordaça...

Mas o Poeta era Poeta
e tinha que falar.

Fez um esforço enorme,
puxou a voz como quem golfa sangue,
e a mordaça soltou-se-lhe da boca.

Porém, não era já mordaça:

-- Agora,
era um poema a queimar
os ouvidos das turbas inimigas
que, na praça, o tinham querido calar.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

#69 - "Que fazes tu, poeta? Diz! -- Eu canto." (Rainer Maria Rilke)

Que fazes tu, poeta? Diz! -- Eu canto.
Mas o mortal e monstruoso espanto
Como o suportas, como aceitas? -- Canto.
E que nome não tem, tu podes tanto
Que o possas nomear, poeta? -- Canto.
De onde te vem direito ao Vero, enquanto
Usas de máscaras, roupagens? -- Canto.
E o que é violento e o que é silente encanto,
Astros e temporais, como te sabem? -- Canto.

(tradução de Jorge de Sena)

domingo, 4 de setembro de 2016

#68 - "bates à porta", Carlos Nogueira Fino

bates à porta
mil vezes bates a essa porta com a voz em sangue
enquanto te encandeia a luz feroz da inocência
a iluminar-te os dedos
contra a grande incógnita da porta

o que balbucias não é ainda cântico
mas a nua lâmina onde aguardas
as primeiras estrofes ainda sem palavras

o balanço dos gonzos
o entreabrir dos lábios
o negro puro
as pupilas enormes
o remoínho ubíquo na pele e na escuridão devassada
a interrogação que lateja

quando a porta se abre
é que já pouco importa
a eternidade ficou toda e para sempre naquela pulsação
desordenada

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

#67 - A MAGNÓLIA, Luiza Neto Jorge

A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me à forma
o meu resplendor.

Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria -- na metáfora --
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.

A magnólia
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.


#96 - PERSISTÊNCIA, Rui Knopfli

Desmembrado, o corpo. Apenas um rosto, a imobilidade larvar da carne e o silêncio só excedido pelo livor que, sobre as feições, vai baixa...