domingo, 26 de outubro de 2014

#35 - COMEÇO POR EVOCAR WALT WHITMAN, Pablo Neruda

É por acção de amor ao meu país
que te reclamo, ó necessário irmão,
velho Whitman da cinzenta mão,

para que, com teu apoio extraordinário,
verso a verso, matemos de raiz
Nixon, o presidente sanguinário.

Sobre a terra não há homem feliz,
ninguém trabalha bem no planeta
se em Washington respira o seu nariz.

Pedindo ao velho bardo que me invista,
os meus deveres assumo de poeta
armado do soneto terrorista,

porque devo ditar sem pena alguma
a sentença até agora nunca vista
de fuzilar um criminoso ingente

que apesar das suas viagens para a lua
já matou na terra tanta gente,
que até foge o papel e a pena se alevanta

ao escrever o nome do maldito,
do genocida, o da Casa Branca.


(tradução: Alexandre O'Neill)

#34- POUSIO, José Ricardo Nunes

Faz-me bem deixar
os poemas na secretária
por uns meses,
só família e corpo
e relatórios, projectos,
notas para a imprensa.

O ar do tempo revigora.
A linguagem faz-se rogada
e agarra-se aos objectos,
retira-lhe adjectivos.

O tempo vai transformando
os versos em mais coisas
que não reconheço,
meses depois, quando me sento
à secretária e volto a escrever
o poema de sempre.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

#33 - INSCRIÇÃO SOBRE AS ONDAS, David Mourão-Ferreira

Mal fora iniciada a secreta viagem,
um deus me segredou que eu não iria só.

Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que o deus me segredou.

domingo, 19 de outubro de 2014

#32 - NAMORO DE ALDEIA, Ana Luísa Amaral

Duas horas e meia da manhã:
o trabalho que espera sossegado,
o cansaço do fogo na lareira,
a caneta riscando e o cantar do galo
estremunhado

Deve pensar que são seis horas, este galo, 
e o meu trabalho em sono, o fogo que me fala,
uma unha roída,
um cigarro fumado,
o café a fazer e o poema desfeito
em só cadência

Que tema é este sério a esta hora
breve da manhã, com o trabalho à espera
e o fascínio do fogo?

Deve pensar que possui tema, este poema
que não me evita e me namora ousadamente
a desoras na aldeia

O fogo estala e outro galo canta
e o meu trabalho enjoa sossegado
No romance parado do meu poema e eu,
o café já saiu, começou a chover

Escorrem gotas macias no telhado,
o fogo morre, o trabalho desperta
abrindo um olho lento

e o meu namorado parvo e tonto
carregado de imagens (e de outras coisas leve)
sai furtivo a desoras

Só deixou por roer
a unha do polegar
da minha mão direita

sábado, 18 de outubro de 2014

#31 - LER ESCREVER, Liberto Cruz

Quatro fragmentos

1
Não escrevo para me ler,
Leio para me escrever.

2
Não vivo o que escrevo
Não escrevo o que vivo.
Escrever é outra
Vida viver.

3
Entre a página escrita
E a página a escrever,
Que leitura nos separa,
Que escrita nos aproxima?

4
Pela Vida é que vamos,
Não pela escrita que temos.

Lisboa, 1993

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

#30 - ATHENE PARTHENON, Tomás de Figueiredo

Poeta de hoje vivo ainda a Atenas
das tradições homéricas, -- da lenda...
A minha fantasia -- tece-a a renda
feita de espuma das criações helenas.

Evoco as linhas nobres e serenas
de Bríleis junto a Aquiles -- numa tenda.
Não há breve dizer que eu não entenda
em suas gráceis, pastoris avenas.

Atleta como um grego -- sonho lutas.
Há na minha arte jónicas volutas,
-- acantos lanceolados como insídias...

E modelando as formas dum soneto
no mármore do Sonho predilecto,
a minha pena -- é um cinzel de Fídias!

Coimbra
1 9 2 3

terça-feira, 14 de outubro de 2014

#29 - de NOTAS PARA A REGULAMENTAÇÃO DO DISCURSO PRÓPRIO, Rui Knopfli

1.
Cabe num punho ou num bolso, este cabedal
ciosamente amealhado, mas puído já por usos
e abusos, irremediavelmente contaminado
pelas perversões da ignomínia ou da ignorância,
vez por outra remido, também, na lâmina

célere do mais acerado metal. Se, para brandi-lo,
ergo vacilante a mão, mais de cem fantasmas
antiquíssimos me cavalgam o pulso sobre
que inflecte a fragilidade calcificada
de séculos. Um movimento vai exauri-lo

sob o fardo, já outro lhe põe em risco
a quebradiça ligeireza. O verbo hesitar
lhe empresta o tónus correcto, no silêncio
respira, a sombra lhe dá corpo. Oferece,
por tal, essa aparência ilusória de ser

só chama, comburência sem combustível.
Podes tu, que apenas chegas e tudo ignoras
das traiçoeiras dificuldades experimentadas
nos lameiros que atolam o percurso
antes da pirâmide, proferir a primeira

palavra, como quem percute em festa
o cristal novo do sino alvissareiro.
Meu fendido, escuro bronze, roído
de musgos e cardenilho, apenas consente
a mágoa nocturna deste lamento a prumo.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

#28 - OS VERSOS, José Tolentino Mendonça

Os versos assemelham-se a um corpo
quando cai
ao tentar de escuridão a escuridão
a sua sorte

nenhum poder ordena
em papel de prata essa dança inquieta

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

#27 - MOTIVO, Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço
-- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
-- mais nada.

#96 - PERSISTÊNCIA, Rui Knopfli

Desmembrado, o corpo. Apenas um rosto, a imobilidade larvar da carne e o silêncio só excedido pelo livor que, sobre as feições, vai baixa...