terça-feira, 29 de abril de 2014

#4 - POEMA DUM FUNCIONÁRIO CANSADO, António Ramos Rosa

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

quinta-feira, 24 de abril de 2014

#3 - "Tantas vezes o vi naquela mesa da noite", José Gomes Ferreira

(Na minha vagabundagem nocturna entro
num café quase em frente da Igreja dos
Anjos, frequentado em tempos idos pelo
Poeta Alfredo Brochado, meu amigo so-
nâmbulo.)


Tantas vezes o vi naquela mesa da noite
calado em si mesmo
para não se acordar.

Nesse tempo,
já a poesia não lhe cabia nas palavras,
mas só nos gestos,
na levitação dos passos
perdidos dos ecos...

E certa tarde com uma lâmpada de sombra
pegou na poesia
e levou-a por um subterrâneo de luz
até ao silêncio
escavado nos gritos.

Nesse tempo,
para não quebrarmos o cristal de vivermos por fora,
já não juntávamos as noites na mesma mesa.

Sorríamos apenas,
cada qual do longe da sua ilha:
«Olá! como estás?»
E ficávamos a sonhar
-- simulacro de solidão,
ferrugens e distâncias.

Hoje não.

Hoje se ainda vivesses por fora
esta nossa morte de todos os dias,
iria sentar-me à tua sombra
para explorarmos juntos o silêncio.
E mostrar-te as bandeiras de frio molhado
que trago nos olhos.

Depois sairíamos ambos para o sabor das trevas
onde as formas se devoram
por dentro do sussurro
das ruas mortas.

domingo, 20 de abril de 2014

#2 - ALGUMAS PROPOSIÇÕES COM PÁSSAROS E ÁRVORES QUE O POETA REMATA COM UMA REFERÊNCIA AO CORAÇÃO, Ruy Belo

Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração

quinta-feira, 10 de abril de 2014

#1 - A PALAVRA, Saul Dias

Só conheço, talvez, uma palavra.

Só quero dizer uma palavra.

A vida inteira para dizer uma palavra!

Felizes os que chegam a dizer uma palavra!

#96 - PERSISTÊNCIA, Rui Knopfli

Desmembrado, o corpo. Apenas um rosto, a imobilidade larvar da carne e o silêncio só excedido pelo livor que, sobre as feições, vai baixa...